"Satiagraha foi trabalho mal feito e direcionado"
Perguntado se escreveu o livro O Escândalo Daniel Dantas – Duas Investigações em defesa do banqueiro mais acusado do Brasil, o jornalista Raimundo Pereira Rodrigues, autor da obra, diz que não, que escreveu o livro para defender uma tese. E sua tese é de que a transformação de Daniel Dantas em bode expiatório do processo de privatização das telecomunicações foi uma decisão política do governo Lula.
Se era esse o objetivo, o governo teve êxito total: a telefonia privatizada vai muito bem, obrigado, e Daniel Dantas está fora do mercado de telecomunicações. Em seu livro, no entanto — e é isso que o torna indispensável para quem se interessa pela Justiça e pelo Direito —, Raimundo Pereira disseca a participação da polícia, do Ministério Público e da Justiça nessa campanha de demonização de um cidadão.
Sobra também para os homens de negócio e de finanças e sobretudo para a imprensa. E em geral, pode-se aplicar a cada um deles o veredito que o autor faz do trabalho do delegado Protógenes Queiroz, o homem que assumiu de peito aberto a cruzada de destruir Daniel Dantas: “A opinião sobre o trabalho de Queiroz é a pior possível”.
Em quase três horas de entrevista para a Consultor Jurídico, Raimundo Pereira discorreu sobre o conteúdo de O Escândalo de Daniel Dantas. Jornalista consagrado, com mais de 40 anos de estrada, Raimundo Pereira surpreendeu ao relativizar um dos direitos considerados fundamentais para o jornalista: o sigilo da fonte. Segundo ele, o direito não pode servir para acobertar mentiras do jornalista. E se publica uma informação que não tem como ser comprovada por outros meios, o jornalista tem de revelar quem foi que lhe contou, ou o caminho que o levou até lá. Seu ponto de vista pode ser surpeendente, mas faz todo sentido.
Raimundo Pereira Rodrigues nasceu em Exu (PE), terra de Luiz Gonzaga, há 71 anos. Teria sido engenheiro se, em 1964, logo depois do golpe militar, não tivesse sido expulso da faculdade, junto com outros 20 colegas “subversivos”. Antes de completar o último ano do curso, Rodrigues foi obrigado a deixar o Instituto Tecnicológico de Aeronáutica, o respeitado ITA. Por sinal, Raimundo é engenheiro, sim. Em 2008, recebeu o diploma que lhe foi negado em 64. Mas o doutor nunca reclamou indenização da bolsa ditadura.
Ele ainda tentou escapar do seu destino, formando-se em Física pela USP, e chegou a dar aulas de Matemática. Mas em seguida se embrenhou pelas veredas do jornalismo, em que se tornaria um campeão. Começou trabalhando na revista Médico Moderno, mas depois haveria de ocupar lugar de destaque nas mais inteligentes redações do país: jornais Opinião e Movimento, revistas Veja, IstoÉ e Carta Capital. Agora, é um dos donos da Editora Manifesto, que publica a revista Retratos do Brasil. Como mostra seu livro, continua em grande forma física e intelectual. É casado “há 45 anos com a mesma mulher”, como faz questão de salientar, e pai de quatro filhas.
Participaram da entrevista os jornalistas Márcio Chaer e Alessandro Cristo.
Leia os principais trechos:
ConJur — Como surgiu a ideia de escrever o livro?
Raimundo Pereira — Acumulei muito material sobre esse assunto, e estamos tentando iniciar uma nova fase no nosso projeto de revista. Vi as inúmeras capas que a Carta Capital fez sobre o tema, assim como também vi coisas da Veja. Fui perceber o papel da Veja depois, quando comecei a estudar o assunto mais a fundo. Mas tinha uma desconfiança de que algo estava errado, de que uma coisa assim não podia ser tão importante, que aquilo era meio descabido, desproporcional. Então, desde que eu fiz Veja, depois Opinião, depois Movimento, e mesmo aqui, a partir dos fatos e de como a imprensa vê os fatos, tem-se uma certa noção de como as coisas estão andando. Então, a ideia de que Daniel Dantas é um bode expiatório é resultado de se olhar e dizer: "Isso não é possível, está sendo escolhido por outra razão". Porque é desproporcional.
ConJur — É possível que uma pessoa possa conciliar tanta maldade, como um demônio?
Raimundo Pereira — Eu escrevi alguns artigos para a revista Retratos do Brasil. Neles, eu cito um monte de declarações que saíram na Veja, na Carta Capital, declarações da [ex-senadora] Heloísa Helena, do [juiz federal Fausto Martin] De Sanctis, e outras, exatamente desse jeito: [Daniel Dantas é] o demônio. Então, eu tinha essa avaliação. E mais, nos últimos anos eu me interessei muito por finanças. Foi uma oportunidade para me aprofundar no assunto.
ConJur — Quando o senhor entra de verdade no caso?
Raimundo Pereira — Eu comecei de fato com a história do [ex-deputado federal pelo PT-SP e advogado] Luiz Eduardo Greenhalgh. Ele me ligou, quando foi deflagrada a Operação Satiagraha, e foi pedida a sua prisão. O Luiz é muito meu amigo, foi advogado do [jornal] Movimento, sempre tivemos boas relações. Eu tinha feito uma matéria com ele para a Carta Capital da questão do escândalo do Celso Daniel [ex-prefeito de Santo André, assassinado em 2002], em que ele também foi apresentado como sendo elemento de ligação dos bandidos. Ele foi criminalizado. Mandamos uma carta para a Carta Capital desmontando essa tese, fizemos uma investigação de dois meses sobre essa tese de que o assassinato do Celso Daniel era um crime a mando do PT. Então, já tínhamos feito isso e ele me ligou e disse: “Olha, estou sendo acusado, difamado pelos jornais, e queria saber se você podia passar em casa.” Eu passei, conversamos algumas horas, e ele me deu o material do Protógenes para examinar. Eu fiquei no escritório dele durante uma semana, lendo.
ConJur — Qual foi sua conclusão depois dessa análise?
Raimundo Pereira — Dada a minha experiência de investigação jornalística, lendo o material do Protógenes, havia uma evidência brutal de que aquilo foi um trabalho muito mal feito. Começa pela transcrição dos grampos. Quem é jornalista, quem já entrevistou gente e deu a fita para alguém transcrever, sabe a quantidade de bobagens que vem na transcrição. Esse é um trabalho duro para ser bem feito, coisa de profissional. Então, você olha e diz: “Esse trabalho está mal feito.”
ConJur — É só mal feito?
Raimundo Pereira — Não. Minha avaliação ficou completa depois que o livro já estava escrito. Porque quando eu estava terminando o livro, eu aprendi algumas coisas novas que me iluminaram e me ajudaram a ver que não era só um trabalho mal feito, mas era um trabalho dirigido para um objetivo. Todo esse grampeamento foi editado, para tirar certas pessoas, certos fatos, e deixar o foco em cima daquilo que o delegado queria.
ConJur — Como assim?
Raimundo Pereira — Você pode falar qualquer coisa contra o Dantas que pega, porque ele é o demônio mesmo. Então, qualquer pessoa pode falar mal dele. E [o delegado] fez isso. Eu só fui perceber depois, por uma coincidência. Pedi para o Luiz Eduardo [Greenhalgh] que eu queria publicar no livro a transcrição do grampo de uma conversa dele com o [Humberto] Braz [ex-presidente da Brasil Telecom e assessor de Daniel Dantas]. Em vez de me mandar a transcrição, ele me mandou o próprio grampo.
ConJur — Que diferença faz?
Raimundo Pereira — A transcrição que está no relatório do [Protógenes] Queiroz é uma coisa curtinha, umas dez linhas. O grampo tem 12 minutos. Eu ouvi a transcrição — quando o livro já estava fechado — e vi que era uma edição absurda, má-fé evidente, completamente escrachada. Os dois conversam num episódio da negociação da venda da Brasil Telecom para a Telemar, fica absolutamente claro que é disso que se trata. Tem um bando de gente reunida, está lá o Otávio Azevedo [executivo do grupo Andrade Gutierrez], está lá o pessoal dos fundos, está o pessoal do Dantas, e a conversa está sendo acompanhada pelo Citi de Nova York. A gravação mostra as circunstâncias em que o grampo foi feito, mas essas circunstâncias foram ignoradas no relatório. E aí, na interpretação policial, vira o seguinte: o Braz e o Greenhalgh estão articulando uma comissão para eles de US$ 260 milhões, uma quantia totalmente desproporcional, um absurdo total. Depois dessa, penso que o bom trabalho de crítica seria pegar os grampos que estão guardados e ouvi-los direito, mandar fazer um trabalho de transcrição direito, comparar com o que o Protógenes fez e constatar a má-fé.
ConJur — O Opportunity fica no Rio, o Daniel Dantas mora no Rio. Porque esse caso foi aberto em São Paulo?
Raimundo Pereira — A minha impressão é que foi porque aqui estava o pessoal que queria fazer isso. Então, eles deram um jeito para passar o caso para cá. Mas evidentemente a jurisdição certa é o Rio de Janeiro.
ConJur — Percebe-se um comprometimento nesse caso que vai além do Protógenes. Tivemos procuradores envolvidos, sem qualquer distanciamento. O senhor não vê também uma responsabilidade grave no papel dos juízes?
Raimundo Pereira — Eu não desenvolvo muito isso no livro. Queria fazer uma entrevista com o juiz Fausto De Sanctis, pedi, mas ele não me atendeu. Eu gostaria de conversar com ele, discutir, mostrar minha opinião. Mas eu escrevo, en passant, que eles viram uma coisa evidentemente mal feita e tocaram em frente.
ConJur — Legitimaram?
Raimundo Pereira — Legitimaram. No inquérito, o Protógenes falava em três quadrilhas: a gangue do Dantas, a gangue do Naji Nahas [operador de mercado financeiro] e uma gangue no Palácio do Planalto. E eu percebi, en passant, uma passagem do De Sanctis minimizando isso. Evidentemente, o Protógenes estava indo nessa direção e por isso ele fez o dossiê da Dilma [Rousseff] e do Zé Dirceu [José Dirceu, deputado federal pelo PT]. Mas se ele continuasse, iria enfrentar grandes dificuldades. Então, o De Sanctis minimizou isso, para que o caso ficasse circunscrito à gangue do Dantas, do Nahas, e para pegar o Pitta etc e tal. Porque de qualquer jeito, o barulho ia ser só a favor dele. Imagine pegar Dilma, pegar o Palácio do Planalto, pegar a negociação da BrT e Telemar de frente! É nessas circunstâncias que aparece o nome do Otávio [Azevedo] nas transcrições dos grampos, o que vem a ser a chave para a condenação de Dantas por corrupção.
ConJur — Explique essa história.
Raimundo Pereira — Quando eu li o inquérito [da Satiagraha], fiz uma lista de questões para ir ao Opportunity investigar. Nas páginas 71 e 72 do relatório do Protógenes tem o trecho de uma transcrição, em letras maiúsculas, que é assim: “Já descobrimos que o cara é o Protógenes...” E, mais para o fim, tem: “Entrar em contato.” Então, peguei isso, peguei essas duas folhas e destaquei. Tinha mais umas oito coisas, que eu fui atrás de cada uma delas no Opportunity. Enfim, eu achava que essa era a principal, e que a maioria era besteira. Tinha a história de que o Opportunity tinha infiltrado um cara no exército. Era um pobre de um aluno do IME [Instituto Militar de Engenharia] que fez estágio no Opportunity e teve seu e-mail grampeado. Só tinha conversa dele com a namorada, não tinha nada ver. Mas eu cheguei lá e disse: “Olha, Dantas, eu acho que isso aqui é por onde o Protógenes vai pegar vocês por corrupção”. Aí ele me chamou na sala dele e disse: “Você já ouviu o grampo?” Eu falei: “Não.” Aí ele colocou no computador, ficamos ouvindo, ele chamou a Daniele [Silbergleid Ninio, diretora jurídica do Opportunity]. E daí eu vi que é uma transcrição propositadamente mal feita. No meio da gravação aparece esse Otávio. Entre a referência ao Protógenes e a recomendação de “entrar em contato”, tem o Otávio.
ConJur — E quem é esse Otávio?
Raimundo Pereira — É o Otávio Azevedo, que na época era presidente da Brasil Telecom e hoje é diretor da Andrade Gutierrez Telecom. Era o homem que estava chefiando, por parte da Andrade Gutierrez, a negociação para a compra da BrT pela Telemar. O Humberto Braz tinha trabalhado na Andrade Gutierrez, e eles eram amigos. Então, ele era a pessoa de ligação do Braz na negociação Brasil Telecom-Telemar, que transcorreu durante meses, desde 2007, e vai terminar com a venda, em abril de 2008. Então, deve existir vários grampos de conversas do Humberto Braz com o Otávio Azevedo, mas que não entraram no relatório do Protógenes, porque ele não foi atrás da negociação em que o Otávio era o pivô, e que tinha a então ministra-chefe da Casa Civil Dilma Rousseff como pivô por parte do governo federal. Ele só estava interessado em jogar merda no Braz, no Dantas e na sua astro-gangue.
ConJur — Foi esse o trabalho de edição do delegado?
Raimundo Pereira — Quando eu ouvi a conversa do Luiz Eduardo com o Braz, e vi uma conversa de 12 minutos com uma transcrição mínima e uma interpretação máxima, jogando fora todos os outros fatos que estão no grampo, percebi que o trabalho, além de mal feito, era mal intencionado. O Dantas mandou fazer uma perícia, mas não precisa de perícia para você ver que “Protógenes”, “Otávio” e “entrar em contato” são dois assuntos diferentes. “Entrar em contato” é o Braz entrar em contato com o Otávio Azevedo, porque eles tinham liquidado todas as suas pendências com um acordo. "Vamos parar com todas as brigas." E dentro da Brasil Telecom estava o [procurador da República José Roberto] Santoro...
ConJur — Procurador?
Raimundo Pereira — Esse pessoal ia perder a boca. Porque, com o acordo, as ações todas foram para o vinagre. Então, o que o Dantas queria nessa conversa — aposto 95%, porque nunca você tem certeza absoluta — era isso: “Nós já não fizemos um acordo para parar com isso? Por que estão dizendo que vai haver uma prisão?” Tinha saído o artigo da Andrea Michael na Folha de S.Paulo. “Então, entre em contato com os advogados para ver como é que resolve.” E o Otávio, da parte dele — parece que ainda não estava no comando da BrT —, tinha ainda algumas resistências para fazer o negócio, e esse pessoal estava afim de detonar. Tanto é que no inquérito do [delegado federal] Amaro Ferreira sobre o Protógenes foram detectados inúmeros telefonemas do Protógenes para o Santoro, na véspera da prisão [de Dantas]. Então, o Santoro estava ativo no grupo que tinha também a Abin [Agência Brasileira de Inteligência] e o [empresário Luiz Roberto] Demarco, para detonar a negociação.
ConJur — Nesse exército, qual a patente do Demarco, ele é soldado, oficial, general?
Raimundo Pereira — O Demarco logicamente não quis me receber. Eu insisti, mas ele não quis falar. Também o [ex-ministro das Comunicações de Lula, Luiz] Gushikem, que considero meu amigo, não quis falar. Mas o Demarco é uma pessoa que tirou proveito dessa briga. Se eu fosse fazer uma coisa popular sobre isso, eu escolheria como personagens principais o Dantas, óbvio, o [ex-presidente da Telecom Italia, Marco Tronchetti] Provera, óbvio, e para representar os grandes interesses econômicos, o Sérgio Andrade [um dos donos da Andrade Gutierrez], e alguém do CitiBank. O Demarco é um pequeno que faz os grandes brigarem e tira proveito.
ConJur — Mas o Demarco foi muito importante na demonização do Daniel Dantas. Como ele usou a imprensa para isso?
Raimundo Pereira — Nesse contexto, o governo Lula tem uma parcela de responsabilidade maior. Ele percebeu que o Daniel Dantas tinha o perfil para ser bode expiatório. Precisavam de um cara para demonizar para, pelo menos, parecer que o problema da privatização das teles estava sendo tratado. E o Dantas era amigo do ACM, baiano, próximo do PFL, ex-PSDB, o tipo certo. O episódio que mostra a posição do PT em relação a isso é o momento em que, no comitê de "Lula Presidente", o Gushiken diz para o José Dirceu que tem uma ordem do Lula para não aceitar dinheiro do Dantas.
ConJur — Porque não é "ético".
Raimundo Pereira — Porque não é ético. Então, esse é o momento. Isso cria dentro do governo Lula uma tese de que Daniel Dantas é inimigo do Lula. E daí Mauro Marcelo [chefe da Abin no primeiro governo Lula], e o próprio Paulo Lacerda [diretor-geral da Polícia Federal no primeiro governo Lula], esse pessoal adere à campanha. Quer dizer, não é uma legislação ou a organização do Estado que levam o agente público a tomar uma posição, mas a definição prévia de um determinado perfil.
ConJur — E como Daniel Dantas entra no "mensalão"?
Raimundo Pereira — O PT tem culpa em parte por isso também. Foi uma manobra no fim da CPI dos Correios. Não tendo conseguido enfiar dentro da CPI a ligação com o Dantas, eles apensam ao relatório da CPI uma observação a esse respeito. A Operação Satiagraha é um prolongamento da investigação da Parmalat, que virou Operação Chacal, que virou Dalien, que virou Satiagraha.
ConJur — Todo mundo que se aproximou desse assunto saiu estropiado. O senhor não ficou com medo?
Raimundo Pereira — Quando eu acabei de apurar, tive esse receio. Falei: “Eu tenho uma história aqui, mas essa história vai ser essencialmente de defesa, vai ser interpretada nesse sentido porque é uma crítica ao processo.” Mas não faço a defesa do Dantas. O Dantas é uma figura, como muitos outros no Brasil, no sistema capitalista, que é especialista nesse processo, que para mim é um horror. Eu digo assim: o sistema do capital financeiro, impulsionado pelas regras do mercado, entrou agora em um buraco; se isso é um inferno, o Dantas não é o inferno; ele é um demônio como os outros.
ConJur — Insistente.
Raimundo Pereira — Como o Dantas, tem dezenas no Brasil. Ele é um pioneiro. Ele foi o homem no Brasil do Citibank, o banco que liderou a renegociação da dívida externa do país. O presidente do Comitê de Bancos era o Willian Rhodes, do Citi, que ficou com os papéis da dívida para aplicar. E aí viu no Dantas um cara que já tinha essa expertise, porque ele tinha um fundo. O Dantas representava o fundo do Citi, representava o fundo [Opportunity] do qual ele era gestor, e representava o FIA, o fundo dos fundos de pensão das estatais. Então, eu não defendia o Dantas por ser um homem do sistema financeiro. O que estava em jogo era um processo de mistificação desse processo financeiro.
ConJur — Não é isso que diz o Protógenes?
Raimundo Pereira — O Protógenes tenta defender o sistema financeiro. Ele diz que o Dantas está prejudicando o sistema financeiro em geral, e que o [Naji] Nahas está sacaneando o Banco Central americano. Entendeu? É uma pessoa que não entende nada de nada do sistema financeiro. Ele não entende o que são as reservas do Brasil. Ele é um presunçoso. Eu espero que o pessoal do PCdoB o eduque. Porque eu, por exemplo, trabalhei com o pessoal do PCdoB, fizemos coisas ótimas sobre essa questão do capital brasileiro.
ConJur — Esse caso chegou a se multiplicar em pelo menos mil processos entre os Estados Unidos, Reino Unido, Itália. De repente, foram envolvidas organizações como Kroll, CIA, Citibank, Telecom Italia e os governos da Itália e do Brasil. O processo de Milão chega a dizer que foram comprados no Brasil políticos, autoridades, jornalistas, policiais. Tudo isso foi mesmo só para afastar um empresário da compra de uma operadora de telefonia?
Raimundo Pereira — A disputa no setor das telecomunicações no fim dos anos 90 e começo dos anos 2000 adquiriu proporções gigantescas. A revista The Economist dizia que foram queimados créditos, transações incríveis envolvendo meio trilhão de dólares. O Dantas, inclusive, fez negócios incríveis. A quebra da TIW [empresa canadense de telecomunicações, ex-sócia de Daniel Dantas] foi sensacional. Então, isso foi um processo gigantesco.
ConJur — E qual a participação da Telecom Italia nessa história?
Raimundo Pereira — A Telecom Italia, que é a figura principal desse processo, realmente teve uma experiência insólita. Porque foi privatizada dentro de um esquema que era fantástico, como achava a social democracia italiana que conduziu o processo. Essa estrutura não funcionou e rapidamente a empresa caiu nas mãos da Olivetti, e depois nas mãos da Pirelli. E se notabilizou por se meter em negócios ruins. O bote dela, no Brasil, era em cima da Telesp, junto com a [Rede] Globo, mas ela perdeu. Para tentar a compra da Telesp, ela teve de se colocar em posição secundária nos outros leilões. Porque, na regra dos leilões no Brasil, cada concorrente podia estar em apenas um dos consórcios no bloco de controle, com mais de 20%. A TI escolheu disputar a Telesp e perdeu. Na disputa pela Brasil Telecom, ficou com 38% no bloco do Dantas, mas sua participação só poderia aparecer daí a cinco anos. Tem toda uma história do contrato que eu descrevo [no livro], que é muito interessante. A primeira bomba contra o Dantas é uma reportagem de Veja, que é um rol de besteiras. A revista pega esse contrato, que transformava os 38% do Dantas, depois de cinco anos, em 18%, e não entende, e diz que o Dantas é um demônio, como se o CitiBank e a Telecom Italia fossem imbecis. A revista dizia ainda que o contrato permitia que o pai do Dantas comprasse ação com direito a voto a R$ 1, enquanto os fundos de pensão das estatais tinham pagado R$ 1 mil por ações que não davam direito a voto. A Veja não estudou e saiu essa besteirada.
ConJur — A Telecom Italia se deu mal.
Raimundo Pereira — A TI era, então, uma das maiores do setor no mundo. Com relação à Telefonica da Espanha, ela era quatro vezes maior. Hoje, a Telefonica tem um pedaço dela e, se bobear, engole a Telecom Italia inteira. A TI enfiou 600 milhões de dólares no portal de internet da Globo. Com a crise das empresas "ponto.com", o seu negócio passou a valer US$ 10 milhões. Perderam, ou aí tem uma jogada também, não entendo direito. Foi um momento de grande crise no sistema financeiro de telecomunicações em geral. Os Estados Unidos tinham quebrado. Se não fossem as duas guerras que o Bush moveu, a crise financeira internacional de 2008 teria acontecido em 2001, depois dos atentados. Os atentados foram, digamos, a tábua de salvação para o Bush, que estava desmoralizado e puxou o capitalismo americano para uma sororoca, como dizem. Nesse contexto tinha um personagem com problemas graves. Os documentos estão aí, a TI pôs R$ 3 milhões por mês, por vários meses, na mão do Nahas, em cash. Estamos justo no período da transição do governo Lula e os italianos vêm aqui e declaram apoio a ele. Um deles, acho que foi o [Massimo] Dalema, vem aqui, reúne os representantes italianos e diz: “Olha, o homem é o Lula.”
ConJur — E o governo italiano passa a defender os interesses de suas empresas no Brasil.
Raimundo Pereira — O governo italiano sempre interveio aqui a favor da Telecom Italia, como vários países do sistema capitalista, de modo geral, costumam fazer a favor de suas empresas. O escândalo que é transformado no escândalo do Dantas é o da Parmalat. Ângelo Janone, que é agente de segurança da Telecom Italia, foi duas vezes a Brasília por esse motivo. Se não me engano, em julho de 2004, os italianos conseguem capturar o cara que a Polícia Federal estava perseguindo no escândalo do Parmalat. O Janone vai à Polícia Federal dizer que ele pegou o tal do [Tiago] Verdial, um ex-empregado da Kroll, e que ele pode colaborar. Eles pegam o material da Kroll, fazem um CD e dão para a Folha. No que a Folha repercute o assunto, o Janone volta a Brasília e entrega o CD para a Polícia Federal. Pouco tempo depois, a Polícia Federal faz a Operação Chacal.
ConJur — Esses R$ 3 milhões por mês que o Nagi Nahas recebia, sabe-se o destino desse dinheiro?
Raimundo Pereira — Não. O que eu publico no livro é que há várias referências no inquérito italiano das quantias dadas, por exemplo, ao Demarco. Há inúmeras referencias ao Demarco, ao Nahas, a delegados.
ConJur — O delegado da PF Élzio Vicente da Silva, que comandou as investigações da Chacal, é citado?
Raimundo Pereira — Eu não vi referência a ele. Foi quem recebeu o CD do Janone lá em Brasília. Mas essa é também uma figura com quem eu não conversei, seria interessante conversar. A uma certa altura, no começo de 2007, ele pede para acabar com o acompanhamento das investigações de internet do Opportunity, porque não está encontrando nada. E logo em seguida o Protógenes entra.
ConJur — A procuradora Adriana Scordamaglia também diz que o Protógenes não encontrou nada.
Raimundo Pereira — Isso. Ela disse: “Você tem que provar.” E o Protógenes responde: “Você não entende nada.” Ela responde: “Não é isso. Tem que ter pelo menos alguns indícios para encaminhar o processo. Não basta você dizer que o sujeito é um bandido.”
ConJur — De quê o Protógenes acusa o Dantas?
Raimundo Pereira — Ele não conseguiu, na investigação, a parte essencial, que é a comprovação dos negócios escusos, a começar pelas aplicações de investidores residentes no Brasil no fundo do Opportunity nas Ilhas Cayman.
ConJur — Esse é o motivo inicial da investigação, não é?
Raimundo Pereira — A Operação Satiagraha foi feita para ver a ligação entre esses fundos ilícitos e o "mensalão". O delegado recebeu instrução de procurar o nome do Zé Dirceu nas listas de investidores do Opportunity. Ele investigou o Dirceu, que teve seu escritório invadido. O telefone da namorada dele no Palácio foi grampeado. Porque ele era o “chefe” do mensalão.
ConJur — O Protógenes consegue provar alguma coisa?
Raimundo Pereira — Ele tinha que fazer isso, e então constrói aquela coisa delirante: no grampo, transforma “ele” em Zé Dirceu. "Giba", ele transforma em Gilberto Carvalho [secretário do gabinete da Presidência da República]; a "secretária" vira a jornalista Andrea Michael; e "Ponta do Curral", um local na Bahia, vira “conta curral”. Realmente é um delírio. Ele fracassou totalmente, não provou nada. A Satiagraha foi um gasto de dinheiro público inútil, mal administrado, mal feita.
ConJur — Outro episódio nebuloso na conta do delegado Protógenes é a ação controlada que resultou na condenação de Daniel Dantas por corrupção ativa. O que o senhor apurou sobre esse caso?
Raimundo Pereira — Quando vi o [repórter] César Tralli no Jornal Nacional apresentando a prisão do Braz, eu estava muito bem informado, porque estava investigando todos os detalhes da prisão. Eu mesmo já dissera que aquilo era uma armação. Na revista, a frase que nós usamos foi a seguinte: “Agora a gente está certo, é uma armação. Mas da Polícia Federal ou da Globo?” Foi premonitório, porque depois, vimos que foi das duas. Quando vi que tinha um domínio melhor dos dados, fiz um resumo que começava assim: nem a polícia e nem o jornalista têm autorização para mentir. O sigilo da fonte se aplica tanto ao jornalista como ao policial. O policial não pode fajutar o que ele foi controlar. E o jornalista não pode participar disso. O sigilo da fonte não é uma licença para mentir. O jornalista não pode mentir, como o Protógenes também não pode, dizendo que aquele filme foi feito pela Polícia Federal. É fraude processual, e ele foi condenado por isso.
ConJur — Passou-se por cima da lei a pretexto de combater o crime?
Raimundo Pereira — Digamos o seguinte, há circunstâncias em que é bobagem falar de devido processo legal. No regime militar, não tinha devido processo legal nenhum. Num processo revolucionário, às vezes o povo sai por aí cortando cabeça, e se você ficar discutindo o devido processo legal daqui a pouco estão cortando a sua também. Mas não estamos em nenhuma dessas situações hoje. Vale qualquer coisa para pegar o Dantas, já que ele é um bandido? Estão querendo transformar a Justiça em um circo. E vai lá o [ministro do Supremo Tribunal Federal] Joaquim Barbosa e diz para o [também ministro] Eros Grau: “Como é que você vai dar Habeas Corpus, sendo que a Globo está contra isso?”
ConJur — A publicação de notícias erradas, deliberadamente ou não, foi uma característica desse processo todo. Por que se errou tanto?
Raimundo Pereira — Nessa área de finanças, os jornais especializados escrevem sempre com conhecimento da matéria. O Valor Econômico, por exemplo, é um jornal que entende e fala para empresário. Por isso, não participa do circo. Agora, a grande imprensa, de modo geral, acha que para falar para o povo, que não entende de finanças, é preciso transformar tudo em escândalo, em uma briga de bandido e mocinho.
ConJur — Como é possível que qualquer jornalista que tenha lido o relatório final de Protógenes Queiroz leve o que ele disse a sério?
Raimundo Pereira — Eu li o relatório do Protógenes, a versão resumida, e li extensamente. É um monte de repetições. Li também o relatório da Operação Chacal. Li noticias em italiano, e todo o arquivo que está disponível no processo. Li os nove volumos do relatório do Amaro [Vieira Ferreira, delegado da PF que conduziu o inquérito contra Protógenes por fraude processual e quebra de sigilo]. Estou muito tranquilo. Nós publicamos a opinião do Sérgio Rosa [ex-presidente da Previ, fundo de pensão do Banco do Brasil], dizendo que nosso artigo é uma defesa do Dantas. Eu não disse que não é. Eu disse que, no meu texto, eu ponho uma tese sobre o caso. Porque, no fundo, eu acho que a cobertura estava errada. Coloquei a cara para bater.
ConJur — Com as informações que levantou, como o senhor analisa o papel do ministro Gilmar Mendes, do STF?
Raimundo Pereira — Acredito que os dois Habeas Corpus [em favor de Dantas] foram absolutamente legítimos. Com base em um processo como esse, não tem a menor necessidade de se prender um conjunto de gente sem a menor razão.
ConJur — Você tentou entrevistar César Tralli?
Raimundo Pereira — Eu entrevistei o Tralli para uma matéria lá atrás. Para esta aqui, nem tentei. Fiz mais uma análise do trabalho feito em confronto com os fatos. Tem uma dezena de erros factuais grosseiros na apresentação dele. Ele diz que o negócio [suposto suborno oferecido por ditos emissários de Dantas a um delegado da Polícia Federal, para tirá-lo do inquérito] se deu em um almoço. Não foi almoço, foi um jantar. Como é que foi filmado o que o Tralli mostra sendo o dinheiro jogado em cima de uma mesa? Quem jogou? Em que mesa é? Onde é aquilo? Isso é um mistério. A imagem [do encontro] é uma coisa, e o áudio é outro. No áudio, não tem o Braz dizendo em nenhum momento: “Está aqui, te ofereço tanto.”
ConJur — Como é possível o juiz De Sanctis não ter chegado à mesma conclusão?
Raimundo Pereira — Se tiver a oportunidade de conversar com ele, eu direi para ele assim: "Li sua interpretação sobre quem é o Dantas. Tenho a impressão de que conheço Dantas melhor do que o senhor, porque acompanho a atividade financeira dele há uns 20 anos. E diria também que avaliar uma pessoa é uma coisa extremamente difícil. Li o perfil que o senhor fez do Dantas e acho aquilo ali, me desculpe a expressão, uma bobagem." O que o De Sanctis diz sobre o Dantas é um conjunto de frases. Está em uma linguagem jurídica, mas o conteúdo é o mesmo que a Heloísa Helena defende. É um conjunto de clichês, não é a observação do concreto. Um juiz tem que ser muito objetivo, existe inclusive perícia para se constatar isso. Chame um psicólogo, e peça para ele fazer o perfil psicológico. Parece-me inclusive que o De Sanctis é uma pessoa de pouca cultura.
ConJur — O senhor não considera extremamente grave a acusação vinda da Itália de que houve suborno nos mais altos escalões da República, no Congresso, na Polícia, na imprensa?
Raimundo Pereira — O escândalo escondeu esses interesses. Como as pessoas estavam convencidas de que o Dantas é culpado, é o dono desse escândalo, então não se foi atrás disso. Mas estou convencido de que o governo Lula teve um papel muito importante nisso. A responsabilidade maior é a política. Votei no Lula todas as vezes, e votei na Dilma agora. Mas acho que essa situação é ruim, porque foi uma manobra que impediu a discussão. Parecia que se estava discutindo telecomunicações, expulsando esse demônio, mas isso não estava acontecendo.
Conjur – Falhas como as que se registraram na Satiagraha são comuns também em outras operações da Polícia?
Raimundo Pereira — Tenho um amigo que trabalhou com o [governador do Distrito Federal, que renunciou após ser denunciado por corrupção, José Roberto] Arruda. Conversei com ele porque tive a impressão de que aquilo foi uma armação. Você fazer uma prisão preventiva, uma prisão em flagrante de um governador, do jeito que foi feita, pareceu-me uma coisa meio absurda: dois sujeitos de reputação duvidosa se reúnem em um local público, e da conversa entre os dois sai a prisão preventiva do governador. Eu achei aquilo estapafúrdio. Não entendi até agora. Falei para o meu amigo que achava que era óbvio que havia um esquema de corrupção, e um quarto bandido que ficou gravando aquilo. Mas não é tarefa nem do promotor, nem do policial definir, como ouvi de uma procuradora, que disse: “Nós temos que limpar a administração pública dos bandidos.” Não é assim. Isso é uma coisa socialmente relevante, mas existe o chamado devido processo legal. Você não pode extrapolar e ficar plantando mentiras, fazendo operação controlada. Estou querendo entender por que prenderam o Arruda pelo encontro dessas duas figuras.
ConJur — Nesse clima em que os justiceiros fazem tanto sucesso, está vigorando o que o ministro Celso de Mello explica como “Direito Penal de autor”. Ou seja, a pessoa é condenada e presa, não porque ela fez, mas pelo que ela é. Houve épocas em que a perseguição era contra os negros, contra os judeus, contra os comunistas. Agora é contra os ricos, contra os políticos?
Raimundo Pereira — É mais contra os políticos. Fui ver Tropa de Elite II e fiquei revoltado. É um filme tecnicamente bem feito, você vai sendo levado, aí chega no fim, ele vai espancar o deputado. A Veja está dizendo que pelo Brasil a fora, 8,5 milhões de pessoas já viram o filme, e que essa cena é sempre aplaudida. Na sessão em que assisti, não houve aplausos nesse momento, mas houve aplausos no fim do filme. Até me senti obrigado a falar mal do filme em voz alta. Porque é uma coisa muito grave você achar que a política é a culpada de tudo. É claro que a política está contaminada pela corrupção. Mas qual é o caminho? Existe algum fora da política? A revolução pode ser uma saída, mas você tem que ter bala para fazer a revolução. Senão, não é politicamente correto, para usar o termo. Você tem que ver que, seja por um lado ou por outro, a política é o caminho para você fazer as coisas. Como é que você vai achar que espancar deputado tem algum significado? O Congresso é o espelho da sociedade brasileira.
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